-
Bravooooo!!!! Bravoooooo!!!!
Ao
ouvir essas palavras do público misturadas aos aplausos - que agora estava de
pé à minha volta - meu coração transbordou de alegria. Minhas mãos ainda unidas
ao peito como se eu estivesse rezando, suavam enquanto meus olhos começavam a
ficar marejados. Meus lábios ainda estavam entreabertos de espanto enquanto eu
me dava conta de que ele havia conseguido! Espera um pouco... Meu pai pela
primeira vez estava chorando?
Sim,
ele estava! Com um lenço puído que ele mantinha do tempo que namorava com
mamãe, ele acabava de timidamente enxugar suas lágrimas, ainda no palco. Ele parecia
em transe, como se não acreditasse no que estava acontecendo.
E
tudo isso graças a mais uma estupidez da minha irmã que mantinha-se sorridente
ao seu lado. Mas pela primeira vez ela acertara na sua loucura. Tudo começou a
duas semanas atrás quando durante uma faxina, ela encontrou atrás do
guarda-roupa de papai uma porta secreta.
Quem
diria que aquela casa velha teria algo do tipo? Quando Susana me contou que
havia encontrado tal coisa, imaginei que fosse mais uma de suas histórias
malucas (ela adorava criar histórias, diga-se de passagem). Mas ela me torrou a
paciência durante os próximos três dias sobre o tal lugar misteriosa, e, para
me ver livre de tal situação, resolvi acompanha-la.
Fomos
ao quarto de papai no momento em que ele estava trabalhando. Empurramos o
guarda-roupa e surpreendentemente eu me deparei com a tal entrada.
Instantaneamente me lembrei do livro as crônicas de Nárnia e pensei: “isso não
pode estar acontecendo”.
Susana
riu como se soubesse o que eu estava pensando. Toquei incrédula à porta e com
um estalo, ela mostrou-se trancada. Bufei frustrada.
-
está trancada, Suzi. Vamos voltar!
-
toda porta tem uma chave, não tem? – replicou, ela satisfeita exibindo um colar
que eu não sabia que ela tinha. Ao puxa-lo de dentro da camisa, uma chave
pendurada no lugar do pingente reluziu meio a escuridão
-Como
você consegue essas coisas?
Ela
deu de ombros como resposta. Após girar o trinco, ouviu-se um estalo. O cheiro
indicava que ela claramente havia sido aberta nesses últimos dias e eu bem
sabia quem havia feito tal proeza.
Eu
podia ouvir o som do meu coração batendo quando finalmente a porta se abriu por
completo. E obviamente, não havia nenhum mundo mágico como Nárnia ali. À
primeira vista, parecia apenas um montueiro de caixas empoeiradas, e batendo o
pé no chão impaciente, indiquei minha saída. Contudo, antes que desse um passo
para trás, senti a mão suave de Susana envolver-me. Ela era o oposto de mim em
tudo, inclusive na teimosia.
-
espere! – pediu, ela enquanto tocava com a outra mão a parede ao seu lado
Uma
luz fraca iluminou o ambiente. Senti minha boca abrir e de alguma maneira eu
não conseguia coloca-la de volta no lugar.
Susana
sorriu.
-
o que foi? – perguntei, torcendo os lábios
-
sua cara de espanto. Você estava engraçada.
– respondeu, ela enquanto aproximava-se de uma das caixas antigas.
Pareciam que iriam se esfarelar a qualquer momento. – toma. Segura essa aqui.
A
caixa era mais leve do que supus. Quando abri, vi de dentro reluzir um
trompete. Assim como tudo desse cômodo, ele era antigo, mesmo assim era algo
incrível.
Eu
olhei para Susana intrigada, e algo chamou minha atenção. Atrás dela havia
vários troféus e fotografias de concurso de música. Coloquei com cuidado a
caixa no chão quando Susana me entregou um pacote. Era um maço de cartas.
-leia
– pediu, ela
-
eu não posso. Pertence a alguém... não tenho direito!
-
leia... você precisa saber sobre uma coisa!
Antes
que respondesse qualquer coisa, uma zoada atraiu nossa atenção. O som do portão
da rua trincando, indicava que papai acabava de chegar do serviço.- Mexer em
suas coisas sem permissão certamente o deixaria fulo da vida. Com a pouca
experiência de vida, eu aprendi que não era bom cutucar uma onça velha com vara
curta. Só Susana para adorar se arriscar. A vida dela era uma verdadeira
aventura - Desesperada, coloquei rapidamente tudo no lugar e arrastei a biruta
comigo.
Mas
algo havia acontecido. Eu passei a noite inteira pensando sobre o que
aconteceu, e, no dia seguinte, no mesmo horário, pedi a ela que me levasse de
volta aquele lugar. Prontamente, invadimos o pequeno cômodo, já decididas sobre
o que buscar. Enquanto silenciosamente eu lia as cartas, Susana empenhava-se em
organizar e limpar cada item. Quando novamente ouvimos o familiar som do portão
trincando, fechamos a porta.
No
terceiro dia, continuei minha leitura. A ultima carta terminou e atrás havia
uma fotografia de um estrangeiro segurando um trompete, chamado Louis Armstrong
e atrás uma mensagem escrita caprichosamente por mamãe “meu bem, nunca deixe de
sonhar. Que ele seja uma inspiração para você. De quem muito te ama, Berenice”.
Não
sei quando uma lágrima tocou minha pele. Agora o conteúdo das cartas faziam
sentido para mim. Durante todos esses anos, papai havia trabalhado em uma
oficina do bairro como sapateiro enquanto enterrava o seu talento. Ele trocou o
seu sonho para manter a nossa família, quando mamãe faleceu.
Susana
parecia saber o que eu estava pensando quando ela gentilmente segurou minha
mão. Isso não era justo com o papai. Ele foi o melhor trompetista da cidade e
agora se tornara um simples sapateiro! Não que o trabalho dele fosse indigno ou
algo do tipo... Mas ele precisava reviver aquilo que ele deixara para trás. Eu
não tinha ideia de como isso aconteceria mas ele precisava de uma nova
oportunidade.
No
dia seguinte, enquanto papai terminava de escovar os cabelos, Susana começou a
tagarelar sobre sonhos.
-
aonde você quer chegar com esse assunto, Susana? – interrompeu, ele bruscamente
enquanto pescava sua pasta de trabalho da cadeira de maneira voraz – a vida nos
prega obrigações e responsabilidades! Você precisa entender isso!
-
sim senhor... – disse, ela antes de virar as costas e sumir de vista. Senti um aperto no meu coração. Quando papai
se tornara assim?
Quando
ele saiu, encontrei Susana no canto do quarto abraçando as pernas com o queixo
encostado nos joelhos. Seus olhos eram tristes. Abracei-a ternamente e ela
deixou escapar um fungado. Um longo
silêncio percorreu sobre nós.
-
tenho uma ideia! – disse, ela para meu espanto. Revirei os olhos.
-
eu ouvi anunciar no rádio pela manhã que eles estão lançando um concurso de
caça-talentos... você pode apresentar o que quiser e... E o vencedor ganhará muitos
cruzeiros. O valor dá pra comprar uma casa nova!
-
papai não vai querer se mudar, essa é a nossa casa!
-
esse não é o ponto... – replicou, ela impaciente levantando-se – através do
concurso, papai voltará a ser quem ele era!
-
e como você vai fazer ele voltar a tocar aquele trompete, espertinha?
-
deixa comigo!
* *
*
Nos
próximos dias, vi Susana agir como louca. Ela escreveu uma carta ao tal
programa do rádio contando um pouco sobre a história de papai – à sua maneira
sonhadora, é claro, e passou a conversar com ele sobre esses assuntos.
Susana
mantinha o coração cheio de esperança. Finalmente chegou o dia do evento. Papai
acreditava que ela iria apenas cantar alguma coisa para esse tal programa. Assim
como eu, ele queria se ver livre dessa ideia e concordou leva-la ao concurso. Mal
imaginava ele que ele seria o centro das atenções.
O
estúdio era maior do que eu esperava. Havia mais pessoas do que a principio
aparentava. Os candidatos começaram a apresentar-se. E finalmente o número 28
foi chamado. Era a nossa vez.
À
seguir, tudo parecia acontecer em câmera lenta.
Da
plateia, vi quando Susana disse alguma coisa no ouvido de papai e enquanto
segurava-o pela cintura, meio a um abraço, o trouxe lentamente para o centro do
palco. De dentro da caixa misteriosa que ela carregava com a outra mão pela
alça, saiu o trompete de papai, que por sua vez parecia paralisado.
Com
um sorriso doce ela o incentivou. Segurei o pingente do meu colar com uma força
exagerada, imaginando apavorada o que iria acontecer em seguida. Mas para minha
surpresa, ele aceitou o objeto caprichosamente lustrado. Deixei escapar um
silvo ao ouvir a banda atrás começar a timidamente tocar os primeiros arranjos.
Olhei
em volta e a multidão parecia prender a respiração, atenta. Fechei os olhos e
surpreendentemente eu ouvi papai tocar pela primeira vez. Era algo sublime. Era
a música que ele em secreto cantarolava, sempre que se lembrava de mamãe – que
mundo maravilhoso, de Louis Armstrong - Eu podia sentir a música em minhas veias. Apesar
de toda indiferença que ele se esforçava manter em relação ao seu talento, assim
como o guerreiro Aquiles teve seu disfarce feminino na ilha Skiros desmascarado
por Ulisses ao segurar uma espada, revelando-se o guerreiro que de fato era, papai
teve toda a sua dureza quebrada naquele momento. Uma onda magnética percorreu por todo o meu
corpo quando Susane o acompanhou, soltando sua bela voz.
Eu
sentia orgulho. Uma felicidade inexplicável.
Eu
jamais esquecerei aquela noite. A noite que eu vi meu pai sorrir e chorar ao
mesmo tempo emocionado. Grato pela vida. Grato por tudo.
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Abraço,
Jeiane Costa.
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